Para começar o Ano Novo em beleza, não há como uma história do passado; neste caso, do ano passado.
Era uma vez…
A neblina baixa não permitia vermos para além de uns míseros 10 metros. Sentia-se uma aragem gélida que transformava a pouca precipitação em pequenos flocos de neve que nos pousavam suavemente na nossa face e roupa, que por estas alturas ou eram de lã ou então improvisados fatos da chuva (daqueles das obras bem amarelos)… não pensávamos sequer ouvir falar em membranas impermeáveis!
Iniciara-se o ano de 2003 e tínhamos decidido ir passar o Carnaval aos Picos da Europa para conhecer as montanhas numa onda de turistas. Tinha visto a imagem nuns folhetos turísticos e na internet e, desde esse momento, nunca mais me saiu da cabeça o Naranjo. Na verdade, passei os dias a sonhar e a deslumbrar-me com as imagens do El Picu nos postais das pequenas lojas de conveniência que abundam pelos Picos da Europa.
Ficou a promessa de voltarmos no ano seguinte, mas a ideia de um dia poder estar na base desta montanha nunca mais me saiu da cabeça. Tinha ficado infectado com vírus do Montanhismo, embora por esta altura ainda não o soubesse…
Neste ano de 2009, tínhamos uma semana de férias devido a uma data muito especial: o nosso segundo aniversário de casamento. A Ana nunca tinha estado nos Picos, daí que seria uma bela altura para o fazer. Quanto à possibilidade de podermos escalar o Naranjo… deixava-a um pouco nervosa e a mim apreensivo!
Mesmo com umas previsões de tempo terríveis e a tentativa de nos persuadirem a trocarmos as Astúrias pelos Galayos, nós mantivemos o plano inicial. Havia o plano A e o plano B, isto porque quem conhece a meteorologia da zona sabe que nada está garantido.
Depois de uma passagem turística por Potes, Fuente Dé, Arenas de Cabrales, Sotres, Cangas de Onis, lá nos resignamos e na tentativa de fugir à chuva e decidimos abandonar o plano A e seguimos até Valdehuesa com o intuito de escalarmos um pouco. Embora a escola nos agradasse bastante as nuvens negras perseguiram-nos e proporcionaram-nos uma noite única (ventos fortes e chuva que nos danificaram a tenda). Como ainda chovia pela manhã, acabamos por desistir da ideia de escalar. Qualquer que fosse a escolha, o mau tempo teimava em seguir-nos.
Novamente em Cabrales. A previsão dava dois dias de céu muito nublado e a possibilidade de chuva no primeiro dia. Restava-nos o derradeiro dia para tentar realizar o velho sonho…
Quinta-feira de manhã, reconfortados por um belo jantar (a típica Fabada bem regada), seguimos pelo denso nevoeiro e alguma chuva até vermos a sua silhueta… Não, não era o Naranjo mas apenas o refúgio (Refugio Julian Delgado Ubeda), que com tanto nevoeiro só nos apercebemos dele quando batemos com o “nariz na porta”!
Respirava-se história; história do montanhismo e isto mexia comigo, e só por aqui estar a caminhada já valera a pena. No entanto, desde que abandonamos o carro que não conseguíamos ver além de 5 metros e a paisagem era inexistente para nós; continuava sem ver o “dito”. Perdemos algum tempo a ver os livros de croquis e a conversar com o guarda (descendente de tugas).
Ao inicio da tarde e de forma a presentear o nosso esforço e perseverança, o vento acabaria por afastar as nuvens durante uns míseros 5 minutos e lá se encontrava ele, o Picu Urrielo ou El Naranjo de Bulnes (silêncio). Era incrível (pausa). Mais imponente do que esperava, compacto e com uma silhueta única, ainda não tínhamos digerido bem a emoção e estávamos de volta à penumbra.
Decidimos então aproveitar a tarde para fazermos o reconhecimento da aproximação, com o receio de que o nevoeiro no dia seguinte nos dificultasse a tarefa. Diga-se que foi uma decisão acertada, pois aproximação era mais complicada do que esperávamos.
O grande dia chegara e embora o tempo não estivesse melhor saímos de manhã cedo e rapidamente nos pusemos na base da via. Só aqui o nevoeiro nos abandonou e nos possibilitou ver a face sul e a via escolhida (Directa de los Martinez).
Na verdade era um momento único para mim e senti que os breves segundo antes de colocar a primeira protecção (um cordino numa ponte de rocha) duraram uma eternidade (suspense). Estava a realizar um sonho e tinha que viver o momento intensamente, se bem que o mar de nuvens denso por baixo dos nossos pés me deixasse desconfortável. Mas lá iniciei a escalada. A ideia seria fazer os dois primeiros largos de uma só tirada, mas com a outra cordada ainda na segunda reunião optamos por parar na primeira. A Ana rapidamente se colocou a meu lado e lá seguimos por um largo fácil mas vertical com uma saída de dois passes em travessia seguido de uma tirada em boas presas até à segunda reunião. E mais uma vez tivemos que esperar que a outra cordada “desaparecesse”.
Começávamos a ganhar altitude e a usufruir da paisagem e lá iniciamos um dos largos mais fáceis colocando aqui e ali cordinos em pontes de rocha; esta formação à qual não estamos habituados transmite-nos bastante segurança e são de fácil protecção, daí que eu usei e abusei delas!
Enquanto segurava a Ana na terceira reunião, aproveitei para deslumbrar o silêncio e a paisagem e sentir o quanto estes locais me trazem uma tranquilidade e paz inigualável. É por estes momentos que escalo e que me dedico à montanha. A Ana no seu ritmo acelerado lá se aproxima de mim e, mal se colocou novamente a meu lado, eu já estava pronto para arrancar. Inicio o quarto largo fugindo um pouco aos croquis que mandavam por um diedro e entro nos famosos “canelizos” que me obrigam a uma maior concentração. Depois de colocar o segundo friend, olho para esta atípica fissura e penso que o melhor é arrastá-lo, pois a fissura mantém a sua largura no decorrer dos seus quase 20metros. Sai-me uma escala de prazer que tanto gozo me deu, possibilitando-me entrar no anfiteatro! Depois de mais um fácil largo chegava o momento de “abandonar” o material e seguir trepando até a “arista cimeira”. Ao percorrer esta bela e tranquila aresta senti-me invadido por uma óptima sensação e por fim lá estava eu de pé ao lado da famosa santa. Com uma vista de 360graus, um mar de nuvens e o facto de estarmos sós no cume do Naranjo fez deste um momento que nunca vou esquecer; o guarda do refúgio bem nos disse “quedar solo en el nombre és um lujo”. Mas não houve tempo para relaxar e depois das fotos da praxe demos de retirada e em apenas 3 rápeis estávamos de novo na base da via. Confesso que só aqui senti a alegria invadir-me e não conseguia parar de sorrir! (palmas)
Regressando ao refúgio, brindamos com um acolhedor tinto e despedimo-nos do guarda com a promessa de voltarmos e lhe levarmos uma “botelha” do nosso Porto e uma posta de bacalhau. Ao final do dia estávamos de nova em Cabrales, mas sempre sobre um denso manto de nuvens.
Embora não tenha desfrutado da deslumbrante paisagem da cordilheira cantábrica, esta foi sem dúvida uma experiência muito marcante. Não pelo feito em si, pois a via escolhida é a mais simples e percorrida de todo o maciço, mas pelo que esta montanha significa para mim, pelo seu excelente calcário e por poder realizar isto com a Ana…
Durante os 500km que separam dos Picos do Porto não parei de pensar em voltar, para desta vez seleccionar uma outra face. Este é, sem dúvida, um local a voltar e voltar e voltar… afinal foi aqui que tudo começou!
Mais informação:
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Refúgio Vega Urriellu / Delgado Úbeda
Por Sérgio Duarte
Coincidência… passei as férias à espera de um dia melhorzinho para ir aos picos da europa lol
As fotos são magníficas… Adorei 🙂
By: Filipe on Janeiro 4, 2010
at 2:52 pm
Espectacular! O texto, as fotografias, as emoções descritas. Adorei ler!
By: Sérgio on Janeiro 14, 2010
at 10:04 am
[…] via “Amistad com El Diablo” na face Este foi sempre o meu principal objectivo. Depois da minha primeira incursão pelo Naranjo esta face fascinou-me e passou a fazer parte dos meus planos. Ao ver os muros verticais de […]
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